Por Rodrigo Dalla Pria
O rearranjo das competências tributárias dos entes estatais promovido pelo novo sistema constitucional de tributação do consumo tende a ocasionar um sensível – e positivo – impacto no regime de resolução de conflitos tributários pelos órgãos de contencioso administrativo tributário. Trata-se, não há dúvida, de uma grande oportunidade de aperfeiçoamento dessa grande torre de babel, composta por inúmeros subsistemas autônomos, que é o contencioso administrativo tributário brasileiro.
A Emenda Constitucional nº 132/23 promoveu uma verdadeira repactuação do federalismo fiscal, tal como forjado, originariamente, pelo texto constitucional de 1988. Esse rearranjo de competências impositivas também é refletido no regime de autocontrole da atividade impositiva (contencioso administrativo tributário) responsável por absorver e solucionar os litígios entre os sujeitos de direito tributário que eventualmente exsurjam a partir da concretização do novo regime de tributação do consumo, que haverá de ser instituído segundo os parâmetros jurídico-materiais estabelecidos pelo texto constitucional reformado [1].
É preciso ter em conta que as normas sobre contencioso administrativo tributário são regras de “Direito Tributário Processual” – e não de Direito Processual (direito judiciário) propriamente dito, no sentido proposto pelo artigo 22, inciso I, da Constituição –, de maneira que qualquer alteração que se proceda na competência material impositiva acaba por resultar, naturalmente, numa modificação da competência para dispor sobre processo administrativo tributário.
Assim, a concentração da competência para legislar sobre tributação do consumo (IBS e CBS) nas mãos da União trouxe consigo, como consequência lógica, a competência deste mesmo ente para legislar também sobre as regras do contencioso administrativo tributário relativo às novas espécies tributárias instituídas pela Emenda Constitucional nº 132/23.
A integração da tributação do consumo, portanto, pressupõe a acomodação dos processos e dos órgãos de contencioso administrativo tributário, o que haverá de ser feito por meio de lei complementar federal. Não por outro motivo, para viabilizar a administração compartilhada do Imposto sobre Bens e Serviços, o texto constitucional reformado prevê a criação de um Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços que, dentre as atribuições previstas no artigo 156-B, inciso III, da CF, está a de “decidir a respeito do contencioso administrativo” [2].
Acontece que, não se trata somente de forjar um modelo de contencioso administrativo tributário compartilhado entre os entes “competentes” para exigir o IBS, mas também de integrá-lo, ao menos parcialmente, ao contencioso tributário relativo aos demais tributos que compõem a competência impositiva da União, a quem cabe instituir e exigir a Contribuição sobre Bens e Serviços, cuja materialidade há de ser idêntica à do IBS (artigo 156-B, § 7º, da CF) [3].
Mais que isso, o modelo de contencioso administrativo tributário a ser implementado haverá de ter participação efetiva das administrações tributárias dos estados e municípios, haja vista que a competência administrativa para fiscalizar, lançar e cobrar prevista no artigo 156-B, § 2º, inciso V, do texto constitucional reformado – rigorosamente observada pelos artigos 312 e 313 do PL 68/2024 [4] – traz consigo, a reboque, a correlata atribuição para controlar os atos impositivos por eles emanados.
Desafio
Assim, conquanto esteja claro que a estruturação dos contenciosos administrativos tributários relativos ao IBS está à mercê das opções políticas a serem adotadas pelo legislador complementar por ocasião da regulamentação do regime de cobrança desses tributos, parece certo também que o grande desafio desse novo modelo de resolução de conflitos será, justamente, a harmonização da ideia de simplicidade, alçada à condição de princípio constitucional tributário pelo artigo 145, § 3º, da CF, com a opção do texto constitucional reformado pela preservação da competência administrativa dos entes “subnacionais”, escolha esta que revela preocupação do constituinte reformador com a proteção de outro princípio constitucional estrutural, qual seja: o princípio federativo.
Na condição de mandados de otimização – para usar uma expressão muito própria à teoria dos princípios proposta por Robert Alexy – ambos os princípios constitucionais acima referidos – o da simplicidade e o federativo – devem ser realizados na maior medida possível e segundo as possibilidades jurídicas constitucionalmente estabelecidas.
Eis, aqui, o racional que deve nortear o legislador complementar federal na elaboração orgânica, estrutural e procedimental do contencioso administrativo tributário do IBS: a realização harmônica, na maior medida possível, dos princípios da simplicidade e da autonomia federativa dos entes políticos “subnacionais”.
Nesse contexto, é possível vislumbrar um modelo de contencioso administrativo tributário que seja absolutamente forjado exclusivamente no âmbito do Comitê Gestor e de seus órgãos inferiores, que abrangeria duas instâncias ordinárias e uma instância especial centralizadas, modelo este que, dentre outros efeitos, praticamente esvaziaria a competência administrativa de autocontrole da atividade impositiva das administrações tributárias estaduais e municipais. Essa estrutura orgânico-judicante, no entanto, precisaria ser integrada, ao menos para fins de uniformização da jurisprudência atinente ao IBS e à CBS, àquela própria de resolução de conflitos decorrentes de tributos de competência da União – isto é, ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscal (Carf) do Ministério da Fazenda, sob pena de comprometimento dos anseios de uniformidade e simplificação que inspiraram a reforma constitucional.
Possibilidades
Parece ter sido esse o caminho trilhado pelo PLP 37/2024, de iniciativa do Partido Novo, bem como a inspiração que norteou a elaboração do PLP 50, oriundo do trabalho do grupo “Mulheres no Tributário”.
A despeito dos ganhos com uniformização e racionalização do contencioso administrativo, esse modelo tem como característica uma sensível mitigação da competência – que agora é meramente administrativa – dos entes políticos subnacionais. Nesse tocante, é preciso que rememoremos as calorosas discussões estabelecidas por ocasião do trâmite do projeto que deu origem à Emenda Constitucional nº 132/2023, arrefecidas, em grande parte, pela promessa de que a regulamentação da reforma, via lei complementar, daria conta de assegurar a autonomia administrativo-financeira dos estados e municípios.
Solução diametralmente oposta àquela que propõe a centralização total, no Comitê Gestor, do contencioso administrativo tributário do IBS, é a que se materializaria sob a forma de manutenção dos regimes de contencioso locais, reservando ao Comitê Gestor somente a função de instância unificadora. Esse modelo valorizaria, com maior evidência, a vontade do constituinte derivado em preservar a autonomia dos entes estatais, a despeito de comprometer, em parte, o propósito simplificador da reforma. É essa específica circunstância que sustenta algumas respeitáveis objeções a essa solução, tais como as formuladas por Eduardo Salusse em artigo veiculado no Valor Econômico (edição de 19/4/2024).
Outra possibilidade, em tese mais compatível com os enunciados constitucionais que estabeleceram a competência administrativa tributária dos estados e municípios para fiscalizar, lançar e cobrar o IBS, mas que também preserva o animus simplificador da reforma, seria forjar o contencioso administrativo tributário do IBS de forma unificada, mas descentralizada, de modo que as instâncias ordinárias de primeiro e segundo graus ficassem sob gestão direta das administrações tributárias locais, que também possuiriam uma instância especial para julgamento de recursos fundados em divergência entre entendimentos firmados pelas instâncias ordinárias locais. Nesse modelo, reservar-se-ia a um órgão centralizado do Comitê Gestor tão somente a competência para dirimir as divergências entre os órgãos locais.
Não se trata aqui, vale advertir, de manter a competência dos órgãos de contencioso administrativo locais, tal como existem atualmente, mas sim de forjar um contencioso administrativo tributário único, uniforme no que tange aos regimes processuais/procedimentais, à estrutura orgânica e submisso às regras expedidas pelo Comitê Gestor, mas com representações e gestão locais das administrações tributárias, que serão responsáveis, inclusive, pela seleção de seus julgadores e instalação de câmaras de julgamento segundo as necessidades e limites locais.
Tudo isso, por óbvio, sob coordenação e segundo as regras estabelecidas em lei complementar e pelo Comitê Gestor. Estamos a falar, portando, de um contencioso único, tal como originalmente projetado, mas com competência judicante descentralizada, constituído por órgãos julgadores locais aptos ao processamento e julgamento dos lançamentos lavrados pelas respectivas administrações tributárias.
Síntese
Esse modelo, ao mesmo tempo que valoriza a competência das administrações tributárias locais, tem o condão de sintetizar, com grande precisão, aquilo que o inciso III do artigo 156-B, da CF, quis enunciar com a expressão “decidir o contencioso administrativo”, harmonizando-o com o quanto disposto no § 2º, inciso V, do mesmo do dispositivo, possibilitando, na maior medida possível, a realização simultânea dos princípios da simplicidade e da autonomia dos entes estatais (federativo). Trata-se de algo muito similar ao que se fez com relação à própria competência material para exigir o IBS, em que a instituição e a regulamentação do tributo restaram unificadas nas mãos do legislador complementar federal e do Comitê Gestor, tendo a competência para fiscalizar, lançar e cobrar ficado a cargo dos estados e municípios.
Não haverá, admitimos, a mesma simplificação pensada e objetivada no texto original da PEC nº 45/2019. Mas nem poderia ser diferente, já que o texto aprovado pela Emenda Constitucional nº 132/2023, estabelecendo um modelo dual de tributação do consumo, também não é o mesmo que fora incialmente projetado. Importante lembrar, nesse tocante, que foi justamente essa alteração parcial nos termos iniciais do projeto de reforma constitucional da tributação do consumo que viabilizou o consenso que resultou em sua aprovação.
Ainda assim, a mera unificação do sistema processual administrativo tributário acarretará efeitos simplificadores consideráveis.
Não bastasse isso, cremos que a adoção de uma estrutura de contencioso única, compartilhada e descentralizada permitirá, futuramente, um avanço ainda maior na busca por um contencioso administrativo tributário racional e normativamente homogêneo, avanço este que vai muito além das fronteiras do regime jurídico de tributação do consumo e das pretensões simplificadoras idealizadas pelos formuladores do projeto de reforma.
Em verdade, a implementação de um contencioso administrativo tributário compartilhado entre órgãos de julgamento do Comitê Gestor geridos, de forma descentralizada, pelas administrações tributárias locais, tal como ora propomos, possibilitará uma futura integração de todo o contencioso tributário estadual/municipal, produzindo efeitos simplificadores também no que tange ao modelo vigente de resolução de litígios tributários relacionados aos demais tributos. Isso porque, a mera existência de órgãos de contencioso administrativo tributário que representem todos os estados e municípios brasileiros admitiria que uma singela regra de integração viesse a permitir que, por meio de convênios firmados entre estes entes, essa mesma estrutura de contencioso viesse a ser utilizada para processamento e julgamento dos conflitos relativos aos demais tributos de suas respectivas competências impositivas.
Isso possibilitará que julgadores representantes de estados e municípios apreciem a legitimidade da cobrança de tributos de competência uns dos outros, aumentando a equidistância dos julgadores e favorecendo a implementação da tão almejada “justiça tributária”, valor este que também fora expressamente erigido a condição de princípio pela Emenda Constitucional 132/2024.
Momento é favorável
Pensamos, aliás, que o momento político é muito propício para uma empreitada dessa envergadura, pois tramita no Congresso Nacional o PLP (projeto de lei complementar) nº 124/2022, elaborado sob os auspícios da comissão de juristas formada especialmente para elaborar projetos de reforma do contencioso tributário, e que propõe a estipulação de normais gerais sobre processo administrativo tributário, dentre as quais poderia perfeitamente estar a mencionada disposição integradora/unificadora/simplificadora do regime de contencioso administrativo tributário.
O passo seguinte e derradeiro seria a reforma do sistema de contencioso administrativo tributário da União, com a estipulação de regras orgânico-institucionais, processuais e procedimentais idênticas àquelas que informam o contencioso administrativo tributário relativo à tributação do consumo. Também neste caso, a implementação de tais inovações estaria respaldada por um ambiente político muitíssimo favorável, pois encontra-se em trâmite no Congresso Nacional o PL (projeto de lei ordinária) nº 2.483/2022, forjado pela mesma Comissão de Juristas liderada pela Min. Regina Helena Costa, destinado à modernização do processo administrativo tributário federal.
O resultado desse esforço legislativo simplificador e integrador seria a sonhada unificação de todo o contencioso administrativo tributário nacional. É tudo que nós, cidadãos, agentes econômicos e operadores do direito desejamos, indo ao encontro dos valores e objetivos que informaram o esforço reformador que resultou na promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023.
[1] https://www.conjur.com.br/2023-nov-05/processo-tributario-reforma-tributacao-consumo-contencioso-tributario/
[2] Art. 156-B. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão de forma integrada, exclusivamente por meio do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços, nos termos e limites estabelecidos nesta Constituição e em lei complementar, as seguintes competências administrativas relativas ao imposto de que trata o art. 156-A:
III – decidir o contencioso administrativo.
[3] Art. 156-B. (…)
(…)
§7º. O Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços e a administração tributária da União poderão implementar soluções integradas para a administração e cobrança dos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V.
[4] “Art. 312. A fiscalização do cumprimento das obrigações principais e acessórias, bem como a constituição do crédito tributário relativo:
I – à CBS compete ao Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil;
II – ao IBS compete às autoridades fiscais integrantes das administrações tributárias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Art. 313. A RFB e as administrações tributárias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
I – poderão utilizar em seus respectivos lançamentos as fundamentações e provas decorrentes do processo administrativo de lançamento de ofício efetuado por outro ente federativo;
II – compartilharão, em um mesmo ambiente, os registros do início e do resultado das fiscalizações da CBS e do IBS.
§1º. O ambiente a que se refere o inciso II do caput terá gestão compartilhada entre o Comitê Gestor do IBS e a RFB. § 2º Ato conjunto do Comitê Gestor e da RFB poderá prever outras hipóteses de informações a serem compartilhadas no ambiente a que se refere o inciso II do caput.”
Rodrigo Dalla Pria é advogado, doutor em Direito Processual Civil e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professor do programa de pós-graduação stricto sensu (mestrado) do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), professor e coordenador do curso de Extensão Processo Tributário Analítico do Ibet, coordenador das unidades do Ibet em Sorocaba e Presidente Prudente e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 19 de maio de 2024